quarta-feira, 21 de maio de 2014

De manhã

lavando vasilha. mãe, posso ler pra você as receitas de fadas?, diz ela. pode. eu vou começar aqueles exercícios de números primos, diz o outro. arrrrhhhh, corre o mini menino com um pote de pepino em conserva nas mãos. pego ele debaixo do fogão. geladeira aberta, fecho. 250 g de morangos, açúcar de confeiteiro, mas eu tenho que dividir por todos os números até 79? mimi, uma mãozinha me puxa. pega um copo grande de sss sssuu sundái. é sunday, meu bem. tem que ter um copo grande, ela diz. ai, acho melhor fazer na casa da vovó. mas, filho, você já estudou os fatores e múltiplos? não. então vamos lá, senão não vai rolar. largo as vasilhas. vou pro sofá. mãe, e wafer? é casquinha? se fala vafer ou uáfer? ah, ah, ah!, diz o pequenininho. ele tá subindo a escada, cantarola a vozinha de menina. desce, meu bem. nnnnnão. chega o pai, mancando. conheci o cubano. abrir a geladeira não pode, eu digo. não, aí não. ele cruza os braços e sai bravo. ele receitou antibiótico, mas eu não vou tomar. só a pomada tá bom. 75 é número primo? á, á, á, aponta o dedinho de mini menino pro filtro. duas bolas de sorvete. água, meu bem? água. joga no chão. avelã picada. o que é avelã? mas o Zé Valério falou que vai pegar uma raiz que vai sair tudo. não é a primeira vez que você tem isso, né, eu digo. não??? tem certeza? o português foi parar no hospital por causa de bicho. aff! mãe, me ajuda aqui? olha que legal, pra eu saber se 120 é múltiplo de 2, é só eu pensar que se 6 vezes 2 é 12, 60 vezes 2 vai ser 120! legal, né? é. já tô monosilábica. gente, ele foi pra rua. vou lá. rua nada, tá em cima do monte de bambu. aaaaarrhhh! aaarhhhh! não consegue descer, né, vem cá, eu te pego. nnnnnão. tão tá, vou subir. nnnnnão! vasilhas, ai. mimiiiiii! despertador. já arrumou a cama? menina, esse seu sapato tá no chão até agora? não é sapato, é cro-c. vão se ajeitar pra ir pra escola. conversas. números, banana split. toca despertador de novo. conversas. computador, água. toca de novo. genteeee, vamos! hora de ir almoçar. nego, vai lá que hoje eu não vou almoçar. foram. ufa. enfim, silêncio. 


agora posso pensar nas minhas coisas.



sábado, 17 de maio de 2014

As sensações e a força brutal

dia das mães e fomos nós, só nós duas, na casa da Cuca. como que há tempos eu queria passear com ela, só com ela, fomos neste dia, quando sinto que especial é ter filhos. a Cuca, aquela mesma, prima do Saci, mora aqui pertinho. logo ali embaixo, sob uma lapa de pedra grande. tem uma árvore caída na porta da casa dela - camuflagem - e ela fez um fogão de barro lá dentro. há tempos eu queria levar a pequena lá. provocar sensações. relembrar estes seres fantásticos que povoam nossa casa, nossa cidade e nossa vida. há tempos que eles estavam dormindo em nossas memórias.

fomos. descemos, pulamos a cerca, andamos pelo pasto, descemos, vimos a mais linda copaíba, vimos a pedra e eu vi a árvore caída. a porta. demos as mãos. pulamos os galhos das árvores e entramos. lá estava: o fogão, já velho, um pouco destruído, um cupinzeiro queimado no meio da casa, uma pá encostada em um canto de pedra que lá está como uma prateleira. silêncio nosso; som, só da natureza. eu o quebro com um sussurro: ela deve ter estado por aqui, ou o primo dela, o Saci - tem marcas de fogo e tem essa ferramenta. ela: tô com medo. vamos embora? saímos pela outra porta. rapidinho. fomos.

o medo, quando controlado, provocado assim, de propósito, liberta toda a imaginação presa em nossas rotinas. o cupinzeiro, para a pequena, foi um caldeirão em um novo fogão. ela viu um caldeirão.

andamos sobre pedras, pulamos outra cerca, fomos pelo pasto e chegamos em uma água que corre lá por perto, vinda de uma nascente próxima do brejo, ali perto. gosto muito daquele cantinho. ela não se lembrava de lá. andamos um pouco mais e chegamos onde as pedras se abrem em uma fenda feita por anos e anos e milhares anos da água escorrendo por ali, a fendinha. é antigo, esse lugar. as pedras denunciam a idade como se rugas da natureza. sentamos. se é que a Cuca toma banho, é ali que ela toma, só pode, é tipo uma banheira!, riu a pequena. silêncio nosso, barulho, só da água. e eis que eu fico sabendo que quando a pequena coloca uma concha na orelha, pra reviver o mar, ela escuta até as gaivotas. que bonito, isso! 

penso que é nas sensações que vivem as imaginações.

olho pra essa pequena e vejo tanta tanta tanta delicadeza em seu rosto que me pergunto: como vou ensiná-la a força necessária? há força na delicadeza? penso, com uma esperança medrosa que me enche toda, que vou aprender isso com o tempo. vou colocar muito reparo nisso, na força que a delicadeza - por si só, só por ser o que é - consegue exercer no mundo. me parece brutal.